UM: Viaje, sem sair do lugar

A música estava alta. Não era para incomodar ninguém. A intenção era outra. Qual quer que fosse. Era tão longe, dava para contar as horas dentro daquele forno de carro: uma, duas, três, quatro. Deixa pra lá, é melhor mudar de cedê. All the lonely people... Todas em um lugar só, mas quem se importa de onde vêm? Devem ser enterradas em outra terra. Paralelas. O calor diminui o sol já está baixo, logo serão seis da tarde. Ainda tem chão pela frente.

Segundo as coordenadas do mapa e a quilometragem, Débora deve chegar a Santo André por volta das três da manhã. A parada será para abastecer. “Como mesmo essa viajem começou?” Era o início de cada diálogo imaginário. Suas recordações partiram do pressuposto que uma música despertara o sentido de tudo. Um pouco de insenso ajudou, mas foi a canção, os sentidos, o coração em disparada e I’m only sleeping no toca fitas. Dormira por três noites debaixo da mesma árvore no parque central, quando acordou de súbito ás cinco e meia. Enquanto a cidade se arrumava para o trabalho, Débora despertava para a viajem. Gozado isso.

Quarenta e sete quilômetros mais tarde, com o sol forte no rosto e gosto de rosquinhas de auto-estrada na boca, muita coisa percorria os pensamentos. Cada música tinha a sua função: good day sunshine para despertar, she said she said para gritar bem alto e abrir as janelas (sempre soube que ironic tinha um sentido revolver de ser), tomorrow never knows para dizer eu te amo. O verbo passado é empregado ao afirmar amor. “Amei, muito. Agora foda-se”. As lágrimas ainda estavam ali, perdidas, confundidas com as pálpebras. “Não irei mais enganar-me”, prometia em vão. Sabia que mais um dia ou outro she’s gonna fall in love again and again. Ok, farwell my dear.

A pressa ia dando lugar a ansiedade que dava a vez para a satisfação que trocava de lugar com o cansaço, e o sono vinha no final, para rir da sua cara. Uma parada para o descanso mental, e uma festa interiorana. As barraquinhas enfeitadas de janeiro davam as boas novas, era dia de São Sebastião. Engraçado como tudo é típico: você pode perambular por entre as brincadeiras e rifas, perceber que cada pedaço de gente que se achava por ali, poderia ser os mesmos de outros lugares. Minas, Goiás, Mato Grosso e Pernambuco. O que muda é só um pouquinho de cor por aqui, luz dali.

Havia vários rapazes formosos. Alguns fortes de braço, outros magros de espírito. Oh, my family’s role in the world revolution! ‘O que algumas gotas de álcool não podem fazer por você meu caro’. Tudo bem, depois de alguns gemidos no ouvido nem desconfiará de quem passou por entre as pernas. Cochas talvez. Quem sabe, a jornada é longa e a estrada é sempre bem vinda. Scenic World. Se o mundo coubesse em uma canção, despertaria até as letras presas nos dedos dos mais desavisados. Versinhos de ‘canção’… É melhor correr atrás de outra vódca da barraca dos beijos, antes que o paladar mude.

A noite corria alta. Já não importava tanto saber onde estava, para que serve as estrelas ou ainda se vai sobrar um pouco de amor próprio depois de tudo. Jogue uma moeda para cima e veja o que a sorte lhe reserva. Só não vá ficar preso nela. “Cínico como um amante. Diga mentiras para mim! Parem de sussurrar cantigas e promessas. Vocês, estrelas vagabundas, nunca saberão o que é sofrer, sentir o corpo estremecer, direto do peito para as pernas. Como é mesmo essa cor? Nem sei, nem sei”. Esta noite Débora estava faladeira. Lamentava joelhos, cotovelos e vírgulas.

As divagações são como as águas de um riacho, sempre em uma única direção, lineares. Como chegamos aqui ou como será o futuro, são perguntas sem propósito, mas com um princípio: confundir. Aquele que não sabe quem é, confunde-se fácil com estas divagações lineares, trechos de um pesar sem solução. A busca de Débora, talvez, esteja no final. Quem sabe a resposta não está, justamente, em sua frente. Sussurrante a espera de ser ouvida. Assim, num estalo só. O carro é abastecido, água verificada, não não moço, o óleo está bom. Dá pra chegar a Santos de tarde. São dez e meia e o dia é vinte e um.