O segredo de Abelardo

"- Queria ver só se você suportaria saber", era a frase de efeito favorita de Marília. Aos dois anos e meio aprendera a andar. Cansada de sentar, resolveu percorrer ereta os caminhos do sofá da sala, o que não durou muito. Aos sete anos quebrou o tornozelo, gritava como se não houvesse amanhã. Sete semanas de agunia e com uma faca de cozinha, tirou seu martírio e deu, novamente, asas aos pés. Quando tinha quatorze, ganhou um diário. Dezessete anos depois de seu nascimento, marília ingressa na faculdade de letras. Mas, só aos vinte dois, algo de muito mágico mudou sua vida de asas em pés e letras na cabeça. O que não a faria esquecer, mesmo depois dos quarenta.

"- Abelardo era um homem bom". As pessoas sempre lembravam deste distinto senhor com bons olhos. Abelardo tinha quarenta e sete quando morreu de súbito. Subiu no prédio para limpar a calha que lhe cansava, escorregou e caiu. Pobre homem, era bom e todos gostavam dele. A disciplina de História da Literatura Holandesa era a favorita dos alunos. Não que seja laaaá uma disciplina interessante e tal... Mas é que Lado, o professor, era muito bacana. Sabia tanta coisa... E sempre que lia algo, podia ser até bula de remédio, que todos paravam para olhar. Os comentários sobre filosofia indiana eram os mais pedidos, mesmo que não fizessem parte da matéria escolar. Apesar do sucesso estrondoso na faculdade, Lado tinha uma faceta pouco peculiar: tinha um verdadeiro dom.

Marília era uma das alunas mais aplicadas do curso. Queria ser filóloga, desde que ganhara o diário em plenos quatorze anos. Onde dava, sempre deixava um recado, para quem quer que fosse, de que ela esteve lá: uma parede, um papel preso em árvore, na calçada em reforma, em livros. Comprava muitos livros, gastava todo o dinheiro do estágio com presentes letrados para os amigos. O professor Abelardo era seu predileto. Quase que um desafio presenteá-lo, já que Lado sabia de tudo. Todo artigo que Marília lhe entregava sobre um livro em lançamento ou antigo, Lado já havia lido. Era difícil, mas era interessante provocá-lo. Instigava a amizade que crescia vertiginosamente.

Todas as tardes, Lado estava repleto de alunos à sua volta. Aproveitava para falar um pouco sobre a cultura universal. Assunto era o que não faltava. Aquela energia contagiava à todos. Os olhos, brilhantes de desejo, chamuscavam o ar com perguntas das mais diversas. Recordar esses tempos traz uma espectativa de que um dia isso tudo possa voltar. Mesmo que apenas em fotos sépia e papéis amarelados. Marília recolheu-se ao lado do professor. Estava meio apreensiva com a briga que tivera com o namorado. Derramava absurdos no rosto marcado pelo sofrimento. Lado percebeu a preocupação da aluna e amiga e resolveu levá-la para um passeio.

No jardim externo do bloco de arquitetura, Lado descrevia como as estações podem interferir na relação dos viventes. Não estamos falando do tempo, e sim da energia que emana de todas as coisas. Como os astros podem influenciar emoções e incitar ações mais drásticas das pessoas. Marília nasceu com o Sol na casa de marte, ascendente em virgem e lua em àries. Naquele momento júpiter transmutava e se relacionava com mercurio e sagitário. A mulher não entendera nada, mas mesmo assim Lado pediu-lhe a mão.

Dali em diante Marília passou desta para uma melhor. Nunca foi tão claro ser o que é, ver o que são. Na leitura do amigo, a mulher mudara de ótica, órbita. Lado era um amigo muito importante, além de especial. Abelardo sabia das coisas. No dia da calha, Marília ficara de passar na casa do professor para entregar os livros da semana. Chegou três minutos mais cedo que o habitual, o suficiente para ver o amigo despencar três andares. Era um homem bom. E foi assim que Marília sempre lembrou do professor de quarente e sete anos. Um homem bom.