P.s: vozes

Lembra quando nos conhecemos? Estava na parada de ônibus, esperando esperando. Nossa frota não é lá nova e nem rápida. Os motoristas costumam abraçar a groceria no início do dia, até a meia-noite. E de madrugada é mais difícil ainda voltar. Nem lembro mais o que estava fazendo na rodoviária às duas e meia da manhã de quarta-feira (sim, lembro datas e não acontecimentos). Não poderia perder o último corujão. E lá estava: em pé, cansada e com um cigarro equilibrado na ponta dos dedos.

Lá pelas tantas (bem uns trinta minutos de espera), o ônibus chega, entram todos de uma vez, e lota. Nas ruas o único ponto que preenche o espaço vazio é o nosso ônibus, lotado. Como nunca fui a primeira da fila, fiquei lá no meio, sem espaço para mexer meus pés. Agarrada a três livros da escola, fui olhando para o teto (posso garantir-lhes que a vista é das mais 'plenas'), com grande expectativa de chegar sã e salva em casa.

Chegando no final do eixo sul, na curva pra EPGU, o ônibus faz uma curva brusca. Sem querer (porra, estava em pé sem segurar em nada!), desequilibrei-me e pisei no pé de alguém. Não conseguindo identificar o personagem de meu desastre, pedi desculpa em voz alta para todos. Daí em diante um fio de voz ficou empregnado no ar. Era bonita, bem entonada. O homem da minha vida. Já via-me casada com um senhorzinho meia estatura, óculos, cabelo desgrenhado preto, joelhos de marfim e pele de cordeiro. Perdi tanto entre meus pensamentos que desci sem saber o nome da voz.

Algumas semanas depois, peguei um ônibus que fez conexão na rodoviária. De lá partiria para a faculdade. Eram três e quarenta da tarde, um sol de rachar e o desanimo percorria cada milímetro do meu sangue. O senhor humor, também, não era dos melhores. O vento bagunçava as ideias e embaralhava, mais ainda, meus cabelos. Estava cansada. Um rapaz veio a aproximar-se da parada. De longe parecia muito bem apessoado. De perto mais ainda. Ui. Sabe aquele frio na espinha? Aquele que só aquela voz grave no cangote pode oferecer? Então, fui sentindo o coração acelerar. Poxa, o cara é gato e fica do meu lado na parada. A vida é realmente maravilhosa (insira sua ironia aqui sobre vida+maravilhosa+é).

O vento sopra mais forte. As sensações flutuam. Flores de maio caem exalando perfume onírico pelo ar (iés, nós somos bregas).Enquanto isso tudo acontecia ao meu redor, a certeza que meu príncipe encantado de voz melodiosa do ônibus da madrugada estava ali, pertinho e mais pertinho. Ele olha pra mim (acho que vou enlouquecer de emoção). Em dois segundos, mais um momentinho e declaro à ele filhos, datas e bodas de diamente!

Para tudo, maria, que ele vai falar comigo:

''-bla bla bla bla bla".

É isso mesmo. Não consigo lembrar o que ele me disse. Só sei que a voz, o perfume e tudo mais foi embora. Meu deus, ele fala mais fino que minha irmã de dois anos! Então, como falava anteriormente: dois segundos e boom! Cabou-se a imaginação, perdida em uma voz de menininha no cara mais gato e gay que eu já vi. A vida é realmente uma tragédia (insira sua ironia sobre vida+tragédia+é).

P.s: Aaah. O cara da voz! Sim, sim. Era um senhor de setenta e três anos, locutor de rádio, separado e magro, muito magro. Exalava perfume de jasmim. Quase casei com ele, mas desisti quando a ideia de criar filhos sozinha em um apé 3x2 no final do P norte veio à meus olhos.