DOIS: Você parte de algo

Sabia que havia palavras esquecidas no fundo da gaveta de recordações. “Sabia disso, seu canalha! ESTÚPIDO, CAVAJESTE, COVARDE!” Foi uma discussão calorosa. Os ânimos estavam mais que exaltados pelo álcool. Digamos que algumas pílulas ajudaram. Três anos intensos repletos de tapas, gritos, discussões. Débora já havia perdido a conta de quantas vezes gritara com Júlio: uma, duas, três, quatro. As juras de amor e ódio de cada dia. “Juro que te mato”. “Covarde, não foge, vem cá”. Cada briga era regada a levantamento de jarros, lançamento de cadeiras e beijos partidos em dois. Os vizinhos não agüentavam mais a confusão. Chegava sexta-feira e a polícia batia à porta. O oficial, vinte e sete anos, alto, cabelos castanhos, corte curto, olhos azuis, olhar apreensivo, sempre passava na casa treze do conjunto K para ‘verificar’ se tudo ia bem. Débora apanhava muito, mas também batia.

O Oficial azul era um bom ombro, pernas, mãos. Uma formosura de conforto. As quatro em ponto batiam na porta da casa. A mulher nem mais se preocupava com as roupas. Sabia que passaria pela sala em lances rápidos, quase um flash. Às vezes nem saía. As mãos se confundiam com cabelo e pelo corpo um do outro. Era escandalosa. Já Rodrigo era quieto. Tinha medo de que Júlio pudesse chegar. Gritando, Débora lhe falava que seu marido poderia encontrá-los ali a qualquer momento. Era só uma dose de aflição para melhorar a performance (afinal, If you want to have cities, you got to bild roads), mas era tudo muito rápido. O moço de farda era tímido. Ok, sem espasmos desta vez, assim ele volta amanhã mais animado.

O bolo estava sobre a mesa. Era de abacaxi com frutas cristalizadas. Tinha copiado a receita de uma revista. Gozar de tarde sempre dava vontade de cozinhar. Talvez para se redimir da grande besteira de trair o marido com qualquer uniforme justo. Amava Júlio, mais do que qualquer um poderia imaginar. E foi trepando com o encanador no chão da cozinha que percebeu que quanto mais se distraia com a visita, mais ansiosa ficava para ver seu querido a comandar (era só pra ter mais certeza que preferia ele a apertando a outro). Pena que tudo só ficava mais gostoso com tapas, chutes e arranhões. Enquanto que para ela isso era puro gozo, Júlio já começava a arrumar as coisas para partir. Pensava alto, num alívio de canção, mal amado e enxotado. You invite your friends to tea, but when it’s me you look the door. Não suportava mais o cheiro dela, uma mistura de lavanda com suor alheio. Ele sabia que a mulher o traia. Só não conseguia compreender porque ainda estava com ela. O ódio era maior que o amor. Ou será que ambos os extremos o atraíam mais.

Antes de terminar, Júlio bateu no rosto de Débora. Largou o corpo da mulher na cama. Vestiu uma calça jeans e camiseta roxa. Débora não gostou, era um sinal ruim. Ela sabia que toda vez que se vestia assim, o marido demorava a voltar. Algumas vezes nem isso fazia, ficava três ou quatro dias na casa da avó. Saiu nua pela casa chorando, pedindo que retornasse. Resmungava falta de afeto, pouca atenção. Gritava suas lamúrias de sempre. Júlio não acompanhou. Pegou o mp4, as chaves e partiu. Débora ficou em pé esperando. Nada aconteceu. Perguntou-se diversas vezes se havia agido mal, qual seria o problema. I can’t believe it’s true, i can’t believe that you don’t want me anymore! Tomou banho, arrumou a cama, depois o quarto, e então cômodo por cômodo.

Um dia inteiro passou e Débora organizava a prateleira de cedês por ano, nome e álbum. O sol refletia luz pela janela da sala de manhã e no final da tarde terminava seu caminho na cozinha. Era fácil perceber a trilha iluminada e contar as horas. Três dias de treino e não precisava mais de relógio. No escritório, em cima da estante atrás do livro de formatura da quarta série encontrou um mapa. Era meio desatualizado e tinha diversas marcações. A letra parecia de Jefferson, seu falecido pai. Olhou para o papel, pediu permissão para a lembrança e teve um ímpeto. Três noites depois voltou para pegar o carro, algumas roupas, muitos cedês, livros e sua idéia de promessa antiga. Era segunda-feira, dia dezessete e fazia calor.