Folha do caderno

Dias frios aqueles. em plena entrada do verão, chovia muito na cidade. O vidro do carro embaçava na mesma velocidade que o ponteiro marcava as marchas. Era de manhã bem cedo. Estava com saudade, George. O nome dele é em inglês mesmo. Nascido na chuvosa plymouth no condado da cornualha. Veio para Brasília estudar. "Quem diabos vem pra cá pra fazer outra coisa?" Se perguntava com frequencia o rapaz. Mas seguimos adiante. Como lhe contava, George era inglês de nascença. Fazia mestrado em história oral. "Oras!" Outra vez... vá, pergunte logo. A inglaterra é percursora no tema, porque estudar aqui?" Não me pergunte, deixe a história correr que já te conto.

Brasília fica a mais de três mil km de plymouth. E ainda tem um oceano que nos certa. Tanto faz. George tinha uma razão. Amor. Talvez seja uma fuga de si mesmo. Fugiu por amor! "Melancólico". Deixe-me continuar. Após perder o pai e o avô no mesmo dia, george fica preocupado com o futuro de sua irmã, cecília e decide viajar pelo mundo com a fortuna herdada e conhecer novos horizontes (desta vez na amplitudo do planalto central). Ok, sei que é fantasia, mas não custa nada dar uma pitada de aventura na história.

Bem, george não veio fugido. Veio à estudo (como já informei). Nos primeiros dias estava resoluto que nunca mais voltaria para a frieza de seu país. Não que as pessoas sejam más, por lá. É que o tempo era frio mesmo. No calor do inverno brasiliense, george colecionava histórias diferentes, pessoas com uma identidade cultural adversa à dele. E foi por isso que george saiu de seu país, para viajar.

"Quanto mais escutava, mais aprendia". Já dizia o provérbio favorito de seu avô, Lucio, quem financiava a fabulosa investigação. Quando jovem, Lúcio viajara pela Àfrica, pela busca de um tesouro antigo. Talvez tenha sido por isso que george, agora então com seus vinte e oito estampados na rosto, abandonara a tão sonhada e querida amada em sua terra natal para sofrer de calor nos trópicos.

Faltam só seis meses. Pensou em voz alta o moço. Seis meses para voltar, e então, o que levarei? Qual tesouro encontrei? Será que fui tão longe por pouco? Eram tantas perguntas, a maioria com resposta, evidente. E isso o preocupava mais. Estava tão longe de seu objetivo. E decepcionar o avô não estava em seus planos. Queria voltar pra casa com algo importante. Algo que fosse excepcional. Assim como o avô levou ao pai, quando moço e ainda na Àfrica. Lúcio era historiador. Encontrara manuscritos antigos dentro de uma das colunas do templo de Esneh. Foi um grande achado na época. O que causou estardalhaço em toda a acadêmia.

George lembrava da história de cor. Queria ser tão grande quando o avô, quanto seu pai. Seria tão bom quanto? Os meses se passaram tão rápido quanto os dias de chuva. No tempo do mestrado visitara o centro-oeste de um imenso país. Suou com o sol, chorou lágrimas de chuva. Tantas coisas boas escutou em buritis, cavalcanti e corumbá. Aprendeu a apreciar o silêncio nas falas dos mais experientes. Aprendera que não precisava saber ler, mas que o se tivesse a habilidade de prever as chuvas, poderia sobreviver a uma escalada na chapada. Escutou, certa vez, que cada coisa tem sua hora e cada coisa tem o seu lugar. E que não adiantava repetir mil vezes a mesma coisa, teria de encarnar na própria pele (perdão ao pleonasmo, mas aprendi assim, como os mais velhos), para depois dizer que sabia de algo.

Envelhecera uns 10 anos em três. E quando novembro chegou, sabia que era hora de despedir-se. Sabia que teria de fazer as malas e que lá fora estava chovendo. Não se despedira do sol. Voltaria para a fria cornualha com o coração pesado e algumas dúvidas na cabeça. Cecília e Sabrina estariam a esperá-lo no campo. Lucio, o avô, estaria em sua rockin'chair, com o olhar inquisidor a perguntar: "o que trouxe para mim, neto?". George tinha medo daquele olhar. Vira o avô fazê-lo em breves momentos durante toda vida, mas sempre o temia. Lucio é um bom avô, sabia agradar os netos e ser carinhoso, mas quando queria ser temido... ah era só esbanjar aquele olhar sobre os pequenos e eles logo corriam para o quarto da vergonha. E era assim, como uma criança indefesa que esse moço barbudo e de olhos castanhos se sentia. Era inglês e tinha olhos castanhos. Lembrança de sua mãe espanhola. Uma graça de mulher, que logo o veria quando pisasse no país natal. Morava em Leeds com o marido, Johannes. Lucio era filho de alemães e gostava de seus nomes. Deu ao único filho, johannes, o nome e tudo o que mais importante juntou na vida. E como retribuição, seu filho o presenteou com os pequenos, Cecília, George e Sabrina, seus três tesouros, que vivem com o avô na fria cornualha.

Já não era sem tempo, o avião decolou. George olhou triste para a cidade, mas logo apareceu um fio de sorriso torto nos lábios do rapaz. Falta pouco para o encontro. O moço estava que tava nervoso. Dentro do carro, trocava as palavras, brincando com as sílabas. Mais um minutos.

Na soleira da porta, george se ateve. Não entrou. Deu um beijo carinhoso nas irmãs. "Entre, meu querido!", bradou Sabrina. A pequena estava crescida. Tinha dezessete anos. Vui o olhar triste do irmão, aquele olhar de quem esqueceu algo e resolveu chamar Cecília. Era o abraço da irmã do meio, tão cheio de calor que o faria lembrar. Sempre que esquecia de algo, bastava abraçá-la, que george lembrava no ato do que se tratava.

E lembrou.

"Onde está Lucio?"
"Na cadeira de balanço, a sua espera", disse Cecília.

Ia bater na porta, mas seu coração batia tão mais forte contra o peito que nem precisou anunciar sua presença. Lucio já era cego e muito velho. Pareceu para george, que os três anos longe de casa o envelheceram mais. "Chegue mais perto, quero ver-lhe o rosto". George se aproximou. E quando as mãos de Lucio tocaram os olhos de George aconteceu de tudo se tornar tão claro quanto a àgua, tão saboroso quanto os sanduíches do luiz, tão bom quanto a risada da yara, tão gostoso quanto o abraço de melina, tão, tão... "Vamos, termine logo, o que aconteceu?". Bom. Aconteceu o que deveria acontecer. George devolveu para o avô todas as maravilhas que registrou em Brasília. Descreveu cada recanto, as pessoas, os costumes. Disse do artesanato, das cachoeiras. E os olhos de Lucio foram clareando. Era como se o avô pudesse tocar nas memórias de viajem do rapaz. E voltou a ver. Voltou a correr. E por todo aquele momento, pode viver o que se passara com o neto. Voltou a ter vinte e oito anos e muitas viagens pra fazer. O frescor das notícias de juventude o tornou um deles.

Ao fechar a porta, toda a jovialidade ficara na sala com Lucio. Eram tempos de mudança. E o que George, o moço, foi buscar, o homem George trouxe consigo: as lembranças de outros... sempre vívidas.