Capítulo Quatro

Através do Espelho ~ “- Se eu pudesse, entraria aí. Só para poder viver uma vida inteira sem ter de pensar em ser eu.”

Era tarde. Já passara das dez. Ângela estava se aprontando para mais uma noite daquelas. A perspectiva dos dias não possibilitava grandes acontecimentos. E o tempo, traiçoeiro e rápido, passou a andar devagar, como se quisesse andar pra trás.

“Seis meses.” Pensou Ângela. Muito tempo. Meio ano. Nada de novo. Os dias apresentavam um ar de não ter mais fim. E a saudade de tantas coisas foi aflorando as lágrimas da mulher. Ela já se considerava uma. A idade permitia isso. Era mais um número a contar. Mas o tempo...

“Preciso fazer algo. Um algo que promova uma mudança abrupta.” Mas qual seria? Ela não sabia ao certo o que a fez levar aquele objeto sem utilidade alguma para casa. O espelho foi barganhado do brechó da Avenida Cinza. Decidiu ali na hora. Mesmo que ao optar pelo objeto tenha levado os únicos trocados para o almoço do dia.
Naquela noite fria de agosto, pendurou seu espelho no canto da sala sem móveis. Eram seu único bem material, fora (é claro) as três calças jeans, quatro camisetas (sendo três de bandas), um tênis allstar vermelho e desbotado e quatro conjuntos de roupa íntima.

Decidira se arrumar. Mesmo não tendo lugar algum para onde ir. Tomou um banho. Ainda encharcada pela água fria do chuveiro, ficou a olhar a si mesma. Penteava o cabelo com as mãos. “Tenho que prestar mais atenção. Olhe só essas olheiras!” Não importava tanto. A lua cheia brilhava lá fora, e agora podia olhar com mais nitidez para si mesma. Diante daquele espelho se achou bonita. Logo em seguida fez algumas caretas e passou a rir. Era engraçado. Agora tinha alguém com que compartilhar. Um reflexo de cores e sensações.

Será que ali, do outro lado, tudo poderia ser diferente? Não. Todos os objetos espalhados pelo espaço daquela sala, era os mesmos no reflexo. Ângela não sabia ser bonita. Nem pensava a respeito. Os cabelos lisos escorridos já estavam próximos a cintura. Em breve poderia parecer com a mocinha da novela.

“Espelho, espelho meu... Será...” A pergunta ficou engasgada. Mas na cabeça da moça o feitiço já estava feito. Como narciso no lago, Ângela não se compadecia de mais nada. Ela tinha ela mesma.