Roda viva

"O que posso dizer sobre isso? A vida é bastante ingrata. Só."
Então comece onde a vida desandou.
"Como poderei explicar. Estávamos felizes naquele novembro. Faz tanto tempo, não sei se recordarei de tudo como aconteceu. Algumas coisas ainda estão embaralhadas. Enfim. Todos estavam radiantes com a chegada do novo bebê. Marissa principalmente. Completaria sete meses dois dias antes do 'acidente'... Permita que eu pegue um lenço?"
Sim madame. Continue, ok.
"Okay. Aos sete meses sua barriga crescia como a felicidade em nossas faces. Gustavo havia encontrado um novo emprego. Os três seriam tão felizes."
O rapaz era ciumento?
"Não, nao! De maneira alguma. Gustavo cuidava de Marissa igual as flores da estufa. Com carinho, respeito e dedicação. Não mataria nem uma mosca. Nunca importunou ninguém. Pelo contrário! Sempre esteve diposto a ajudar, quem quer que fosse. Já Marissa... Bem, era um pouco caprichosa, mas uma boa mulher. Era responsável pela instrução das crianças de nossa creche municipal. Costumava acordar bem cedo. Era a primeira em tudo. Preparava os alimentos como para os filhos que sempre almejou ter."
Tinha uma rotina clara, quero dizer, sem surpresas ou imprevistos?
"Não, não... Marissa tinha os passos contados. Às cinco e vinte despertava,
trinta minutos depois estava completamente trajada para a labuta. Deixava a mesa
do café pronta para o marido às seis e sete em ponto entrava no trabalho. Era uma
boa moça. Muito bonita e cobiçada na adolescência, mas depois do casamento se
aquietou e não saía da linha."
Conte-me sobre o dia do acidente.
"Trágico, trágico, seo delegado. Uma catástrofe. Tanto que não consigo
recordar-me com exatidão o que eu estava a fazer, mas certamente Marissa havia
começado o dia como a todos os outros. Encontrei-me com ela para almoçar-mos,
como de costume às 13:45, no restaurante da Corinha. Não havia muito transito,
isso me lembro bem, já que naquele horário o congestionamento costumava a
atrapalhar nossas conversas."
E sobre o que falavam?
"Coisas de comadres, sabe. Mexericos do dia a dia. Como acordamos, sobre como as mulheres estavam vestidas... Essas coisas! Bem, depois do pudim, sempre como pudim de sobremesa, iamos pagar a conta e seguir caminho. Ela para a creche e eu para o escritório. Antes de nos despedirmos, Marissa segurou bem forte o camafeu que tinha junto a blusa, usava como broche. Achei estranho, pois sabia que minha querida era dada a presságios. Fiquei aguardando."
E ela? O que falou disso?
"Nada, seo delegado. Nadica de nada. Ficou muda e com uma cara de mármore.
Parecia até uma estátua antiga, aquelas que vemos em fotografias nos livros
escolares. Durou alguns segundos. Logo em seguida, recobrou os sentidos, sorriu
para mim e despediu-se."
E você, não ficou curiosa?
"Ah, fiquei né. Mas a menina era escrava do tempo. Deu-me um olhar de 'conto tudo mais tarde' e foi embora. Tinha que apertar o passo por conta do relógio, caso o contrário contaria seu primeiro minuto de atraso."
E o marido? Gustavo era seu nome, não é mesmo?
"Sim, sim. Estava na primeira semana no novo emprego. Gustavo era um belo homem. Tinha sempre um sorriso para todas as cituações. Inclusive no último momento. Cheguei na repartição lá pelas 15:00 da tarde. Gustavo já estava à minha espera. Eu consegui que meu patrão o admitisse na seção de datilografia. Ele era rápido e bem treinado. Além de toda a eficiência, característica marcante de sua família. Logo quando adentrei em minha sala o rapaz veio a meu encalço. Queira notícias de sua querida. Contou-me que quando dirigia um pardal quase colidiu com seu carro. Algumas penas ainda estavam no banco de trás do veículo. Carro sem capota dá nisso, não é. Perguntou-me o que achava e lhe respondi que poderia ser um bom sinal. Afinal o pássaro safou-se são."
A que horas o rapaz deixava o emprego?
"Às 17:00. Trinta minutos antes que Marissa. Ele havia tentado dissuádi-la de ir de ônibus, já que agora trabalhava perto dela. Mas a menina era metódica. Dentro em quinze dias entraria de licença, por conta da gestação. Gustavo estava preocupado com sua saúde e pediu o afastamento dela. Claro que Marissa iria obedecer o marido e assim o fez. Porém, naquele dia Gustavo saiu mais tarde. Estávamos muito ocupados com o andamento da campanha e tinhamos de esticar um pouco o expediente. Saímos às 18:00."
Vocês iam juntos para casa?
"Bem, desde que ele começou a trabalhar, sim. Éramos vizinhos. Não entendi o tom da pergunta? Está insinuando... ?"
Não, senhora. De maneira alguma. Este apenas é o registro de um depoimento. As
investigações apontarão a linha que percorreremos. Até lá, a senhora está sob proteção da nossa instituição.
"Okay."
Não a razão para ficar nervosa. Continue a sua descrição, está bem.
"Está. Bem, pegamos um engarrafamento. Havia um homem morto e uma mulher gritando. Parece que foi atropelamento. Não sei, mas isso mexeu bastante com Gustavo. Ficou mais preocupado ainda e apressou o passo para casa. À noite fui convidada por Marissa para o jantar. Ela aproveitou a situação para mostrar o quarto do bebê e as roupinhas. Havia ganho da mãe, uma senhora formosa de Goiás, lacinhos vermelhos para a saída do bebê da maternidade. Estava estasiante com todos os preparativos. Não me dei conta quando ela começou a chorar. Seu rosto estava com um olhar de decepção. Afirmei que isso poderia causar algum mal à criança, mas ela não conseguia controlar-se. Com a balburdia, Gustavo entrou no quarto e ela parou. Despedi de ambos e fui embora. No dia seguinte fomos ao trabalho."
Até então esta era a única pista da discórdia entre ambos?
"Certamente. Não encontrei Marissa no almoço. Achei estranho e quando voltei para o escritório, Gustavo havia se ausentado. Disseram-me que ele foi ao hospital. Perguntei sobre a esposa e não souberam responder. Voltando para casa vi um acidente. Um corpo no chão, no meio da avenida. Parecia de mulher, já que os sapatos eram de salto. Desci do ônibus sem acreditar. Não poderia estar acontecendo, eram 19:45. Marissa saía do trabalho quase duas horas antes. Mas aquele sapato era conhecido, eu sei disso. Então sai correndo e esbarrei com Gustavo que estava escorado na viatura. Estava paralisado de terror. Sua querida, amada flor, estirada no chão. Pensei no dia anterior, quando passávamos de carro e um homem estava ao chão, enquanto uma mulher gritava. Agora a família dele, perfeita, estava destruída. Não é injusto? A vida muitas vezes é injusta. Bem, é tudo que sei.”
E o que a senhora acha que aconteceu?
“Não sei, acho que ela previu tudo. Ela era boa nisso e eu tinha muito medo quando ela fazia aquela cara de mármore. Quase sempre acertava.”
Ok, senhora. Pode ir. Quando houver notícias entro em contato com a senhora.