Eu não tenho cara de facínora

O relógio parecia gritar sete horas da noite a cada meia hora. Por mais que tentasse acreditar que já se passaram muitas badaladas indicando a mudança de horário a situação insinuava-se como uma prostituta das entrequadras da cidade. Ok, o tempo não quer passar, foda-se. Garçom! Traga-me outro drink. Estou sentado entre dois grupos. No meu lado direito encontram-se as moças. Pegáveis e agradabilíssimas. Nota interna: não usar mais termos vulgares nos textos. São quatro no total. Cada uma com uma particularidade singular. Tenho que vos lembrar que apesar do eruditismo das minhas palavras continuo a pensar nas mulheres da mesma forma que o velho vinho temperado do bar. Apimentado a principio, doce na metade e seco no fim.

Uma das garotas não para de lançar olhares pecaminosos para um dos atendentes. Ok, não se pode esperar que olhem para mim. Afinal, a espectativa de uma noite insone e mal aproveitada está no meu cardápio a muito tempo. Ela é baixa, olhos cor de mel, dedos compridos e unhas pintadas de um cor-de-rosa bem claro. Os detalhes são importantes, exprimem o que realmente vale nos encontros mais furtivos que possas imaginar.

Do outro lado um casal persiste em não lançar olhares assassinos em minha direção. Tento relevar. Nota interna: ignorar modos desagradáveis, por mais sensato que seja a ideia de levantar e ir embora. O bar está ameno, porém a maioria das mesas está ocupada. Cheguei cedo. Pedi um Kassler e uma Baden Red Ale para começar. Uma hora depois a impressionável atendente, de nome italiano, pediu-me encarecidamente se eu poderia ceder um pouco e permitir que um grupo de cinco dividissem a mesa comigo. Informei-a que isso poderia ser uma péssima ideia, não estou com bom humor hoje, mas que talvez fosse interessante. Precisava escrever coisas novas.

Quatro pessoas já vieram incomodar-me por conta do barulho da minha máquina portátil, mas em tempos de tecnologia, minha Cássio Writer 1985 tornou-se mais indispensável que nunca. Laptops e celulares mil e uma utilidades cansam. Aliás isso ajuda a compor um certo estilo démodé que exprimo em meus escritos. Faltam menos de cinqüenta páginas para encerrar meu livro e a taberna se mostrou um ótimo lugar para complementação dos personagens.

Sinto informar que estou incomodado com os olhares do casal. Mas só agora percebi que a linha para onde o homem está fixando os olhos transpassa pela minha cabeça. Que bom, algo de errado deve acontecer a qualquer momento. Sinto a energia forte de testosterona em conflito. Averiguando melhor o que se sucedia, noto que as moças ficaram excitadas com a bebida rósea que pousa sobre a mesa. A baixinha pergunta sobre o que tanto escrevo e confesso à ela que tenho de terminar o romance. Nota interna: impressionar não custa nada.

Resolvi apimentar e contei-lhe uma mentira. Vou ser castigado pela minha consciência por uns quinze dias e recordarei sempre do rosto rubro da moça por conta disso. Disse que escrevia sobre um casal que se encontrava no bar todas as quintas. Dois homens (um casal é composto por duas pessoas, não necessariamente do gênero oposto), que galanteavam mulheres e depois da conquista comiam o cérebro da infeliz.

Contei com certo requalque, já imaginando que ela deixaria-me em paz para retornar ao meu oficio, mas não deu certo e ela veio com mais perguntas. Então resolvi incrementar. Destilei detalhes de como eles a embebeciam com o vinho da casa e depois a levavam até o carro. O sangue que brotaria das têmporas ao cerrá-las com pedados de garrafas vazias. Como a comeriam ainda em agonia e por fim a necrofilia. Essa parte censurarei deste relato. Deixo para a imaginação de quem o ler.

Ao final a pobre veio-me com a seguinte frase, que tentarei parafrasear: Para um cara pacato e distinto, você é bem sanguinário. Sim, confesso, mas a magia está nas palavras. Depois de três drinks, as amigas da mocinha cansaram do local e foram embora. A deixaram lá, aos porcos do salão que estavam a procura de restos para se alimentarem. Ela, por incrível que pareça, permaneceu comigo. Decidi pagar-lhe uma bebida para encerrarmos a conta. A mocinha, pobre dela, quis acompanhar-me até a saída. Contou-me que era nova na cidade e que havia me achado interessante.

Dois tabacos depois no lado de fora do bar, ofereci meus préstimos cavalheirescos para encaminhá-la até seu lar. Perto do carro, dentro da entre-quadra, vi uma garrafa vazia ao chão. Ela recordou a história relatada e uma certa apreensão em sua voz denotou timidez em seu avanço. Aproveitei o lapso entre o beijo furtivo e apliquei-lhe um só golpe de esquivo na nuca. Seu corpo alvo caiu em meus braços. A veia pulsando. A imagem mais bela de toda a noite. Valeria a pena. Quebrei a garrafa. Rasguei-lhe mais o decote. Inseri levemente o punhal improvisado em seu peito. O sangue desceu até sua virilha. No ápice ela despertou e tentou sibilar um pedido de socorro. Era madrugada.

O sangue fresco em meus lábios lembrou-me que ainda respirava. Finquei novamente o vidro sobre a têmpora e a morte tornou-se breve. Coloquei o corpo no banco do carona e dirigi rumo a ânsia que me sobrava. Voltei ao bar, pedi mais uma dose de Stolishnaya e fui para o carro. Encerrei a insônia com a moça ao meu lado na cama. Seis e cinqüenta da manhã em meu relógio digital. Ainda faltam cinqüenta páginas para o final do romance. Amanhã à noite reavivarei as esperanças de atos carnais necrófilos. Deixo, novamente, para a imaginação de quem ler a lembrança de meu ato cármico. Limpei tudo e guardei o osso martelo na cristaleira da sala. Para a coleção ficar completa faltará apenas o radium. O dela era muito pequeno