Dez amigos

Era noite. Tinhamos de viajar de um lugar para outro. Não sei ao certo a distância a ser percorrida. A única coisa que sei é que irá demorar. Estamos em um comboio. Em dois carros, dez pessoas se apertam. Quatro delas se revezam ao volante, para que a viagem não fique muito cansativa. Prevenção de acidentes, meu caro. Os outros tentavam, ao máximo, se entreter com frivolidades. Ora era a paisagem que, como num deserto, se modifica a cada cinqüenta quilomêtros, ora são os extensos campos de soja. Monótonos.

Depois de um dia inteiro, paramos. A casa era grande o bastante para todos. Dois andares, lavabos, banheiros com banheiras, dezenas de quartos e uma familiaridade estranha. E, meu deus, como estava bagunçada! Era engraçado, parecia que haviamos estado por lá durante semanas e já tivessemos partido. Depois do banho, tive a sensação nítida de que, realmente, não estavamos lá. Por algum motivo estranho que não soube explicar. Conversei a respeito com Fernando. Ou pelo menos tentei. Naquela ausência de ser em que nos encontrávamos, o rapaz não soube responder. Apenas me indicou que não se lembrava muito bem de tudo. Tudo!

A cozinha poderia até mudar de nome. Talvez para pardieiro, já que a comida estava mais no chão e nas paredes que nos armários. Um digno aposento de quem já foi assaltado. A impressão é que a polícia passou por lá e revistou tudo. Ok, para matar a fome duas latas de azeitona e ervilha dão pro gasto. Desci as escadas e me encontrei com Jonas. Precisavam ver a cara de emburrado ao me ver. Parecia até que não gostava de mim. E olha que a ideia de viajar com namorado foi dele. Hora e meia ficava flertando com Patrícia na minha frente. Cheguei a ficar chateada com isso. Perguntei a Fernando se ele notava as intenções do primo pra cima da namorada, mas a única resposta que obtive foi um grande suspiro. Ele parecia cansado.

Aliás, tudo parecia alienado. As ervilhas tinham um gosto estranho também. A estrada que passava em frente a casa e que nos ligava ao resto da vila, tinha um aspecto de rodoviária abandonada. Meio fétida, meio anormal. Fui até um orelhão pra ligar para minha mãe. Depois de muito tentar e sempre dar ocupado, desliguei o aparelho. De novo a sensação de que algo iria acontecer se instalou em mim. Um segundo depois escutei um uivo. Bom, pelo menos pensei que fosse. Olhei para o aparelho novamente e vi que o fio estava cortado. Talvez já estivesse e eu não notara. Ok, já estava na hora de pensar em partir.

Voltei para a casa e arrumei minhas coisas. Metade estava espalhada por aí, e no meio do processo ia convocando cada um que via pela frente para também se organizar. De repente um tiro atingiu a janela. Ou será que foi uma pedra. Não sei como explicar essa parte, pois tudo pareceu meio nebuloso. Fernando falava para me abaixar e gritava com alguma coisa. Ele estava armado. Não a coisa, mas Fernando. Como aquela Winchester foi parar na mão dele? E mais, como ele sabia atirar com ela? Só sei que ele ficava muito bonito no meio daquela fumaça, tentando proteger quem quer que fosse. E estavamos lá.

Corri atrás de Jonas. Melissa estava aos gritos no meio do pátrio atrás da casa. Mas não eram de terror não. Paracia que estava infectada com algum tipo de virus, pois ria sem parar. Seu rosto estava quase deformado por conta das risadas descontroladas. Patrícia estava no lavabo se arrumando como se fosse a um baile de gala. Pedro ao invés de procurar Lana, gritava e xingava para que o quadro parace de encará-lo. Lana, despreocupada, estava na cozinha preparando uma receita. Acho que sou a única pessoa em sã consciência que tenta acordar esse hospício e partir. O medo era uma constatação. E quanto mais tempo levava para reunir os dez, mais me via só. Complicado.

Meio que de repente, tudo cessou. Já percebeu que sempre tem algo que rompe o medo para logo em seguida tomar seu corpo de pavor? Sim, estava apavorada. Para deixar mais claro, o receio não era nem tanto de partir, mas de tentar (em vão!), unir meus companheiros de viagem e confrontá-los. Aquela casa estava nos deixando loucos. Precisavámos partir. Aliás, porque estavamos ali mesmo? De quem era a casa? Será que já a encontramos assim ou sempre estivemos por lá? Se isso é uma prisão, então como sair dela.

O thriller já não me incomodava mais. Tava começando a ficar irritada com aquilo tudo. Aí Jonas veio em minha direção. E quando se pensa que algo pode piorar, tudo piora mesmo. O rapaz tomou minha mala e me mandou embora. Gritava para eu acordar. Batia em meus braços. Dizia "Aqui não é o seu lugar". Eu não conseguia entender, só ficava com mais raiva, ódio dele. Lembrei dos flertes entre ele e Patrícia e fiquei mais furiosa. Jogava a irresponsabilidade e falta de comprometimento que o comportamento arredio dele nos metera. Aquela casa. Aquele inferno. Ele expressava uma mistura de choque com satisfação. Parecia gostar de me ver derrotada dentro daquele vício. Um barrulho ensurdecedor interrompeu nossa conversa. Sempre o inesperado atrapalhava. Tudo ficou escuro novamente. Não existia mais casa, nem discussão. Sem tiros ou uivos. Era como no começo do mundo. Silêncio. Escuridão. Choque. Nessa hora a porta se abriu. E então, não havia mais nada para se lembrar.