A luz do Lampião


O velho está sentado ao meu lado. Sinto seu medo. Algo que o consome. Lembrar do passado é um passo doloroso, mas ele aceita a missão. Está armado, e sua adaga é um item precioso contra aqueles que, algum dia, juraram esquecer. O conhecimento que ele trouxe de uma vida inteira poderá ser compartilhado? Um difícil questionamento, apenas para aqueles que temem, porém desejam compartilhar de estórias, onde, o protagonista são eles próprios. Sou seu guarda e guia aos portões do tempo de sua trajetória.

Ele começa a narrativa através dos fragmentos da memória que aos poucos se esvai. Meu receio é de que muito do que foi vivido não mais seja possível transcrever. Mas continuamos. Durante a entrevista, suas palavras marcam a ferro e fogo o que dentro de mim consome como uma chama de um simples lampião. E então subitamente o velho me desarma: “como poderei saber se o que a palavra que emprego agora continuará sendo minha após este momento?” Não tenho resposta. Contudo, estória e histórias são frases, pontos e vírgulas que pronunciamos na vontade de que algo se perpetue. Mesmo que nas palavras dos que um dia lerão os escritos e reinventarão o ditado. Como foi frisado por Sônia Maria de Freitas [História oral: possibilidades e procedimentos – São Paulo: Humanitas, 2002. Página 51]: “A história oral impõe legitimidade ao presente deixando para a história os fatos do passado”.

Talvez, com o passar do tempo, sejamos apenas anedotas aos olhos dos que virão. E é bom saber que a probabilidade delas não serem esquecidas é, pelo menos, mínima. Causos são contados e, o que não é relatado, poderá ser esquecido? É fato que, como homens que somos nossa raça não ‘gostaria’ de ser esquecida. E a morte faz isso conosco. No final das contas, um dia inteiro de trabalho será esquecido. Uma vida inteira de esforço e dedicação em busca de conhecimento é esquecido. Quem gostaríamos que nos reconhecessem como produtores de saber que somos, não nos reconhece. E por fim, voltamos a ser apenas nomes riscados em cadernetas. Sem glória, sem honra. Mas felizmente, tem sempre um ou outro que nos resgata do limbo das frases ditas e nos re-significa em cultura e, com isso, nos tornaremos em saber popular. Quem sabe.

O medo que fora dele agora é meu. De continuar, de prosseguir. Não sei se meus feitos terão (para os meus netos), o mesmo significado que os dele me trazem. A dúvida persiste e a jornada também. Fui e voltei da terra sem lei. E consegui, com esforço, mudar um pouco. Através das palavras de um senhor de mais de setenta anos. Que me fitou com seu olhar simples e maduro, a espera de perguntas que não consegui fazer. Porque foi embora? Porque se arriscou em um lugar sem parentes, sem casa, sem chão? Porque razão abandonar, se é que houve abandono, uma vida toda construída na sua terra, para ir adiante? Estas palavras aqui estão engasgadas.

Mas durante a entrevista, João me trouxe uma nova possibilidade. Não era um velho falando ao novo. Era a sabedoria de quem precisou viver para ver se dava certo. Ainda no texto de Sônia Maria [página 52], as aspas de Pierre Norra se fundiram as palavras do velho simples da roça: “A história é elaborada. A memória é vivida”. E ele, o João, por sua vez trouxe outras aspas: “A gente deve continuar sempre indo em frente. Eu fiz errado, saí de Minas para cá (Estado do Pará), atravessei mais de 200 quilômetros floresta adentro e voltei cerca de 80. Você não deve fazer isso! Siga em frente sempre”. Sim senhor, irei.